quarta-feira, 8 de julho de 2009

O VERSO CAI DO CÉU

Por Bráulio Tavares



O Repente é uma forma de criação artística ainda não consignada nos manuais, talvez por não ter sido abordada (ao que eu saiba) por Aristóteles, Hegel ou outros formatadores de nossa consciência estética. É uma arte transversal, ou seja, pode ocorrer em diferentes atividades. Um pouco como a Arte da Narrativa, que hoje já é objeto de estudo específico (a Narratologia) que examina sua presença ubíqua na literatura, no cinema, na poesia, no teatro, nas histórias em quadrinhos, etc.



E o Repente? O repente, também chamado de improviso, é a arte do instante, a arte de criar no próprio momento da execução da obra. Isto é mais visível na música e na poesia oral. Um grupo de jazz expõe um tema musical, e a certa altura cada instrumentista tem algum tempo para improvisar, compor intervenções melódicas dentro do padrão rítmico e harmônico proposto. Todo improviso é um misto de execução (repetição de algo já sabido) e composição (invenção de coisas novas).



O mesmo se dá na cantoria de viola nordestina. Ao cantar “no pé da parede” (a denominação tradicional para a cantoria clássica), a dupla está misturando versos já sabidos e versos inventados na hora. Numa cantoria de três ou quatro horas, improvisar tudo é tão impossível quanto trazer tudo decorado. O repertório de versos que um cantador traz na memória é assombroso, mas ele os vai recordando e encaixando na medida do avanço da cantoria, às vezes por conta própria, às vezes em combinação com o parceiro. Mas ele está sempre pressionado ao improviso. Mesmo quando canta decorado, não tem a comodidade dos cantores de música popular, que se limitam a repetir as canções sabidas de cor, sem que ninguém espere deles o acréscimo de novas estrofes.



O ator de teatro também improvisa. Os “cacos” (frases inseridas no texto original pelo ator) nem sempre são 100% improviso, são piadinhas que o ator planeja em casa e guarda na memória para usar na hora certa. O improviso real é o que ocorre quando algo inesperado acontece no palco ou na platéia e o ator reage de acordo, inventando uma nova fala ou uma nova ação, e incorporando ao espetáculo aquela surpresa. É claro que isso é muito mais possível de acontecer com quem faz teatro de rua, ou em outro ambiente propenso a interferências externas, do que quem trabalha num palco distanciado diante de uma platéia silente e respeitosa.



Um cantador de viola já me confessou certa vez: “Eu só sei o verso que fiz na hora que escuto minha boca dizendo”. Essa leve dissociação psíquica faz com que a mente articuladora dos versos pareça uma instância independente da mente central. Esta última talvez prepare a deixa e as três rimas de uma sextilha, mas no fragor da batalha o teor discursivo dos versos é deixado a essa mente menor e mais rápida. Prodígio? Nem tanto. Todos nós improvisamos o dia inteiro – só que em prosa. Nenhum de nós prepara e decora o que vai dizer no dia-a-dia, e quando tenta fazê-lo (declaração de amor... entrevista de emprego... depoimento à polícia...) geralmente dá com os burros n’água. Somos todos improvisadores – mas em prosa.

O Repente genuíno é tudo que é criado no calor do momento, sem que seja possível voltar atrás e consertar os detalhes, os pequenos defeitos, porque criação e exibição ao público foram simultâneos. É claro que quando um poeta está escrevendo em casa ou um músico está sentado ao piano podem brotar improvisos brilhantes, mas nesses casos não há testemunhas, e a função desses improvisos é trazer material novo, idéias novas, que o artista irá voltando atrás e retrabalhando, pelo tempo que for necessário, até considerá-los prontos. Toda criação artística, por mais vagaroso que seja seu processo, tem uma grande parte de vislumbres intuitivos, incorporações do inesperado, idéias que parecem caídas do céu, mas que não passam de, por assim dizer, fagulhas resultantes do atrito entre o inconsciente e o consciente, onde o primeiro produz e o segundo aproveita, elimina, desbasta, organiza.



Mesmo nas artes de longo prazo como o cinema existem momentos privilegiados de improviso, de administração do acaso e do acidente, de soluções mágicas inventadas no derradeiro instante possível. Só não são repentes autênticos porque só serão vistos pela platéia meses depois. Uma cobertura ao vivo pela TV, por outro lado, é também um momento privilegiado em que o operador de câmara e o repórter que fala ao microfone precisam responder de forma instantânea ao que ocorre à sua volta, e muitas vezes produzem pequenas obras-primas de criação estética – até onde é possível usar esse termo em se tratando de atividades que em princípio não fazem parte do mundo da arte.



No Nordeste podemos considerar repentistas artistas tão diferentes quanto o cantador de viola, o embolador de coco, o aboiador, o mestre de maracatu, o glosador de mesa de bar, o tirador-de-verso no coco de praia... Cada um lida com formas e rituais diferentes, mas em todos existe esse foco no verso feito na hora, muitas vezes respondendo à provocação de um adversário ou aos imprevisíveis pedidos da platéia.



Mais recentemente tem surgido, principalmente em nossas periferias urbanas, a prática do improviso nos grupos de hip-hop ou rappers. É uma prática que nos chega dos Estados Unidos, e que por essa origem bastarda nos incomoda ou nos assusta. Que direito (perguntamos) tem essa música americana de se superpor às formas de Repente que cultivamos aqui, há um século e meio, ou mais?



O DVD Poetas do Repente aborda a certa altura diversas apresentações feitas em São Paulo nas quais subiram juntos ao palco cantadores de viola, emboladores de coco e rappers paulistanos. Uma tentativa de aproximação e de início de diálogo, que teve eco na realização do 1º Encontro Nacional de Rappers e Repentistas ocorrido em outubro passado em Campina Grande (PB), por sugestão, ao que se diz, do próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil.



Esse fenômeno tem um lado mercadológico e um lado cultural. Em termos de mercado, não se compara à gigantesca máquina que existe por trás do hip-hop, manipulando dezenas de selos, milhares de artistas, centenas de milhões de dólares. Perto desses transatlânticos, as modestas jangadas dos repentistas nordestinos correm o risco de sucumbir, não num possível confronto, mas na simples marola provocada pelos pesos pesados.



Por outro lado, o repente nordestino e o hip-hop descendem da poesia oral africana. No âmbito da poesia popular, nosso Repente tem tudo de africano: a propensão lúdica ao jogo de palavras puro e simples; a vocação agonística, competitiva, dos grandes desafios; o sentido profundo de que dois poetas são porta-vozes de suas comunidades; e até mesmo recursos específicos como o trava-língua, a enumeração, as perguntas-e-respostas. Isso é muitíssimo visível no coco de embolada e no free style do hip-hop; menos visível na cantoria de viola, que em nossa cultura do Repente é o lado mais clássico, mais apolíneo, mais ibérico e letrado.



A aproximação entre o repente nordestino e o rap do hip-hop cria delicada convivência entre formas de arte com uma origem comum e um espírito semelhante, separadas pelo abismo entre o gigantismo financeiro que uma veio a atingir (mesmo tendo origem e tendo destino com as comunidades negras e periféricas) e a eterna pindaíba em que vive a outra, que existe há 150 anos no Nordeste, mas sempre foi vista com desdém pela maioria dos nordestinos ricos e letrados.

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